A vida de Machado de Assis é, por si só, uma história digna de romance. Filho de um pintor mulato e de uma lavadeira portuguesa, cresceu como um “moleque de morro”, com poucos recursos e enfrentando problemas de saúde como epilepsia e gagueira.
Ainda assim, com o apoio de pais alfabetizados e o convívio próximo com os patrões de sua família, teve acesso precoce aos livros e à educação — o que, para alguém de sua origem, era uma exceção.
Começou como aprendiz de tipógrafo e logo se destacou nos meios intelectuais do Rio de Janeiro. Frequentou a Livraria de Paula Brito, onde conviveu com políticos, artistas e escritores do mais alto nível. Ali, pôde observar o mundo, ouvir debates sobre tudo — da dança à política — e desenvolver um olhar crítico e sofisticado sobre a sociedade e a alma humana. Essas experiências formaram a base de sua produção literária.
Machado publicou seu primeiro livro de poemas, Crisálidas, aos 21 anos. Casou-se com Carolina Xavier de Novais, uma mulher culta e refinada, que foi sua companheira de vida e de literatura por mais de três décadas. Muitos estudiosos apontam que ela teve papel direto na revisão e construção de suas obras. Após sua morte, Machado nunca mais foi o mesmo — e isso se reflete no tom melancólico de seus últimos escritos.
Ao longo da carreira, transitou entre o romantismo e o realismo, sempre com uma voz literária independente, não se filiando totalmente a nenhuma escola. Fundou e presidiu a Academia Brasileira de Letras, sendo aclamado por seus pares como a figura mais proeminente da literatura brasileira.
Um autor à parte: o estilo machadiano
O que torna Machado de Assis tão singular é sua habilidade de tratar das grandes questões humanas — como o desejo, a ambição, o medo, o amor e a culpa — por meio de histórias aparentemente simples.
Ele não precisa de cenas espetaculares ou personagens grandiosos. Basta-lhe uma sala, um olhar, um pensamento vago. Com uma ironia cortante e uma sensibilidade apurada, ele faz o leitor rir e refletir ao mesmo tempo.
Sua linguagem é concisa, elegante e cheia de subentendidos. Seus narradores, muitas vezes, conversam com o leitor como velhos conhecidos, criando uma cumplicidade que faz com que cada página pareça uma conversa privada.
Em Dom Casmurro, isso se manifesta em capítulos curtos e bem amarrados, com títulos sugestivos e comentários que desafiam o leitor a interpretar mais do que está sendo dito.
Machado também foi mestre em incorporar referências culturais e literárias às suas obras, criando verdadeiras camadas de sentido. Em Dom Casmurro, por exemplo, há ecos da Bíblia, de Santo Agostinho, de Shakespeare e da tradição clássica. Esses elementos enriquecem a leitura e apontam para o esforço do autor de situar o romance brasileiro num diálogo com a literatura universal.
Principais romances de Machado de Assis
- Ressurreição (1872)
- Helena (1876)
- Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
- Quincas Borba (1891)
- Dom Casmurro (1899)
- Esaú e Jacó (1904)
Dom Casmurro: a arte de dizer sem dizer
Ao contrário de outras obras de Machado, Dom Casmurro não foi publicado em folhetins, mas como romance completo, com uma estrutura coesa e pensada como um todo. Essa decisão já revela a importância que o autor atribuía ao livro, considerado por muitos como o ponto alto de sua maturidade literária.
A escolha do título e o tom do narrador revelam, desde as primeiras páginas, um jogo com o leitor: o próprio “Dom Casmurro” nos alerta que pretende reconstruir sua história — ou melhor, justificar sua versão dos fatos.
O texto é repleto de digressões, memórias da infância, metáforas, intertextualidades e silêncios estratégicos. Nada é dito por acaso, e tudo pode ter mais de um sentido.
Machado nos entrega uma narrativa com tantas brechas que ela se torna, na verdade, um espelho da nossa própria forma de julgar, sentir e lembrar. Dom Casmurro não é apenas uma história: é um convite à dúvida, ao questionamento e à releitura.
Machado de Assis e a literatura que nunca envelhece
Ler Machado de Assis é mais do que cumprir uma tradição literária — é entrar em contato com uma mente que desvendou como poucas os labirintos do pensamento humano. Seus personagens vivem entre certezas frágeis e verdades escorregadias, e é justamente aí que sua literatura encontra força e permanência.
Dom Casmurro é um exemplo marcante disso, pois não se trata apenas de uma história de amor e suspeita, e sim de um exercício profundo de leitura crítica, onde cada frase, cada silêncio e cada olhar sugerem mais do que dizem. É um romance que se constrói junto com o leitor, a partir da dúvida, da introspecção e da interpretação.
A atualidade de Machado está na sua capacidade de falar de sentimentos e conflitos que seguem vivos em todos nós. Seus livros não envelhecem porque tocam o que há de mais humano e contraditório em cada época. Ler Machado é, em última instância, ler a nós mesmos — com todas as nossas sombras, incertezas e entrelinhas.
*Foto de capa: afrofile.com.br